Mestrado do Setor Litoral da UFPR insere transgêneros e indígenas nas políticas de cotas

 29 de março de 2017 - 17h01

O Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Territorial Sustentável, ofertado no Setor Litoral da UFPR, tem como proposta central a busca pelo desenvolvimento da sociedade aliado à justiça social e preservação do meio ambiente, por isso a concepção do curso se deu de forma a permitir e fomentar o ingresso de estudantes que fazem parte de grupos tradicionalmente marginalizados.

Os editais de seleção do programa, desde a primeira turma, em 2014, reservavam vagas para negros, deficientes, docentes de escolas públicas, indígenas e transgênero, no entanto, as duas últimas categorias ainda não haviam sido preenchidas. Este ano, porém, no edital de aprovação estavam Davi Vergueiro e Dionne do Carmo Araújo Freitas.

Vergueiro, tem 31 anos, faz parte da etnia Kaingang, e é morador do litoral paranaense. Sua aprovação no processo seletivo de mestrado reflete esforços de outras políticas, como das vagas complementares destinadas aos Povos Indígenas do Paraná, que permitiu que Vergueiro ingressasse na graduação, também concluída na UFPR Litoral.

 

Davi Vergueiro, cotista indígena.

Davi Vergueiro, cotista indígena.

“Quando a gente sai da graduação percebe que pode fazer mais. Optei pelo mestrado em Desenvolvimento porque, além de me sentir muito à vontade no Setor Litoral, tenho a possibilidade de desenvolver projetos e pesquisas que podem auxiliar os povos indígenas a pensar um modelo de desenvolvimento coerente com nossa realidade, sem a necessidade de abrir mão de nossos valores culturais” – conta Vergueiro.

O que é novidade nas vagas reservadas para cotistas é a destinação do benefício às pessoas transgênero, ou seja, aquelas cuja identidade de gênero/sexo difere do sexo biológico ou daquele designado no nascimento, tal como as travestis e transexuais.

Dionne do Carmo Araújo Freitas é a primeira estudante trans a ingressar no PPGDTS por meio das vagas reservadas. Aos 27 anos a história de vida da mestranda ilustra e justifica a necessidade de cotas para trans.

 

A história que as pessoas fingem não ver

Dionne do Carmo Araújo Freitas, primeira transgênero do PPGDTS

Dionne do Carmo Araújo Freitas, primeira transgênero do PPGDTS

Terapeuta ocupacional formada pela Faculdade de Medicina da USP, Dionne fez residência multiprofissional em Saúde do Adulto e Idoso. Mas para chegar até a aprovação no processo seletivo de mestrado muitas barreiras precisaram ser enfrentadas: do preconceito à própria aceitação.

Dionne foi registrada como menino e criada como tal, mas lembra-se que, já aos três anos, sabia que era uma garota: “Eu me sentia assim, ou seja, eu era uma criança transexual”. A terapeuta ocupacional nasceu com o cariótipo mosaico XXY, ou seja, seu corpo não funcionava nem como o de um homem, nem como o de uma mulher. Segundo Dionne, isso foi “sorte, porque como o corpo não produzia testosterona foi mais fácil a transição” para o corpo feminino.

Apesar de descrever como mais fácil o processo, isso não significa que tenha sido um caminho tranqüilo. Dionne conta que passou por vários médicos que sugeriam a reposição hormonal com hormônio masculino, testosterona, uma vez que tanto seu corpo quanto seu registro eram masculinos. “Eu preferia morrer a aceitar o tratamento com hormônio masculino”.

Como acontece com a maioria das pessoas trans, Dionne começou a tomar hormônio femininos por conta própria.Somente aos 14 anos, por meio do Hospital de Clínicas de Ribeirão Preto, que Dionne conseguiu acompanhamento médico. E só depois dos 20 anos conseguiu realizar a cirurgia de redesignação de sexo.

Violência

Além de sofrer com a aceitação da família e dos vizinhos, Dionne ainda precisava enfrentar a transfobia fora do seu círculo mais próximo. “Não podia andar sozinha no bairro onde morei, pois recebia pedradas e cusparadas. Sofri três tentativas de estupro coletivo”.

Na escola não foi diferente. Dionne lembra que era ridicularizada, humilhada e isso piorou no ensino médio, quando a impediam, a força, de usar o banheiro feminino. “ Quando eu entrei na faculdade queria viver como uma pessoa cisgênera –  que tem sexo psicológico igual ao físico e não passa pelos constrangimentos das pessoas transgêneras – , então não contei para ninguém minha condição e por ter nome ambíguo e fenótipo totalmente feminino passei despercebida na faculdade e na pós graduação também. Já na pós minha documentação estava retificada então não me preocupei com nada disso. Tudo isso me mostrou que realmente vivemos uma epidemia de transfobia no Brasil, pois quando me escondi não sofri nenhuma das coisas que passava lá como pessoa trans”.

O porquê das cotas Trans

A decisão pela cota para pessoas trans tem como base estudos que evidenciam como esse público é socialmente marginalizado. Segundo Marcos Signorelli, professor do PPGDTS e pesquisador sobre o tema “a expectativa de vida para uma pessoa trans é de 35 anos, metade da população em geral que chega a mais de 70 anos”.

Além disso, Signorelli lembra que o Brasil é o país que mais assassina pessoas trans, concentrando mais da metade de todos os homicídios cometidos no mundo. A violência que culmina na morte dos trans é a expressão máxima da violência,  no entanto muitas outras formas permeiam a vida dessas pessoas : “isto está diretamente relacionado ao preconceito, falta de informação sobre o tema e reflexo de uma cultura machista” lembra o pesquisador.

Fora a violência há outras questões que intensificam os dilemas e dificultam o processo de auto aceitação da condição do trans, como a falta de apoio na família, que quase sempre culmina na expulsão do lar. E isso se mostra também no ambiente escolar, levando à evasão e, consequentemente, refletindo nas condições profissionais que essas pessoas poderão alcançar. “Muitas vezes a prostituição é o único caminho para a sobrevivência e disso desencadeiam-se vários outros problemas de saúde pública”, ressalta Signorelli.

Para Dionne, a cota para pessoas trans é uma “oportunidade de formação acadêmica para as poucas e poucos que conseguem se formar. Devido a marginalização, e o ‘empurramento’ a prostituição, em  90% dos casos, desrespeito ao nome social e às políticas de retificação de documentos a fim de possibilitar o respeito a dignidade da pessoa humana”.

Diante desse contexto, Signorelli acredita que “ao contrário do que muitas pessoas pensam, cotas não são um privilégio, mas uma possibilidade, mesmo que limitada, de contribuir para um processo de correção de distorções históricas. E fica o convite a reflexão: quantas pessoas trans você conhece que tenham um curso de mestrado ou doutorado? O mesmo vale para pessoas negras? Indígenas?”

 

 

 

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